Reitor Cancelário da Universidade de Coimbra,
Prof. Doutor João Gabriel Silva
Ilustre Director da Faculdade de Letras,
Prof. Doutor Carlos André
Prof. Doutor Eduardo Lourenço
Excelências
Prezados Convidados
Caríssimos amigos
É com incontrolável emoção que me encontro aqui perante vós.
A surpresa, como imediata resposta a um ‘sms’ que me foi dado a ver, acariciou o ego, que cada ser humano possui como reduto intocável, do bem e do mal, e afligiu a minha mente com uma curiosidade incrédula.
E, um ‘não, não, não é possível’ esboçava a busca do porquê deste imprevisto da vida, na tentativa de desvendar que potencial teria transparecido à magnânima leitura da Faculdade de Letras, para a induzir, assim, a uma escolha, talvez pouco merecida.
E em remorsos, descobri-me na consciência vagante de aluno ‘ad eternum’ da Faculdade de Direito, como cidadão latente de Conímbriga, munido de um passaporte de cumplicidades.
E foi assim nessa simples interacção, no repositório dos tempos, que uma pessoa, como eu, podia sentir-se integrada, por coação do acaso ou por suposição de mérito.
Infelizmente, a vida é esta interacção, do indivíduo com o colectivo, desde a sua dimensão ínfima à grandeza e expansão do macro, neste cosmos que se revolta contra si mesmo, por ineficácia das virtudes idealizadas e por acção das desvirtudes cumpridas.
A vida é, afinal, esta relação do indivíduo com o exterior de si mesmo, na rotina da sua proximidade ou imbuída de elementos que abraçam a lonjura do espaço e dos tempos.
E é aqui que a vida ensina, numa dialéctica de buscas e encontros, de exigências e respostas, de aspirações e compromissos. A vida, que absorve e transforma os actos, pode ainda equilibrar juízos, ou não, e temperar ou despoletar emoções e, assim, moldar o sentido que cada um dá à própria vivência... de si, para si e para fora de si.
Mas a vida dispõe, ao indivíduo e ao colectivo, de opções que se afiguram modelarmente como ideais, princípios e valores, traduzidos em ética, moral, justiça, direitos... e também todo o reverso, a que chamamos mal - para as consciências, pecado - para as almas, erro – para os intocáveis e crime - para os indivíduos comuns.
A liberdade é, tão somente, a escolha de opções, por parte do indivíduo, mas que pode perdê-la, sem se dar conta, quando essa escolha não se resguarda da estandardização fácil que o colectivo adopta... e assume... e impõe. E quando isso acontece, esse colectivo de indivíduos, que é a sociedade, vive... uma existência de inacção do espírito e de conformismo de atitudes, sacudidos apenas quando, no dia-a-dia, se sente oprimido pela angústia... de não poder encontrar solução aos seus desencantos.
Um dos elementos que avivavam a chama da resistência, no país que me fez indivíduo, foi o slogan de uma nova ordem mundial. Quatro décadas depois, a nova ordem mundial ficou subordinada à globalização de ideias, formuladas por um pequeno grupo de indivíduos... à globalização de actos, comandados por um reduzido número de indivíduos... à globalização de políticas, decididas por um pequeno grupo de indivíduos... à globalização de regras e critérios, estabelecidos por um reduzido número de indivíduos... numa globalização real da ... atrofia das mentes.
Hoje, o mundo, no seu colectivo maior, perdeu o rumo... porque só age por reflexo e perdeu a subtileza de ser humano, e se tornou refém da padronização do seu activo íntimo, que é o acto de pensar, de conhecer e de entender... para inspirar acções.
Defende-se a violência para se criar uma paz impossível, condenam-se os fracos para mitigar a absolvição das próprias culpas, preza-se a hipocrisia para dar sentido a ideologias ortodoxas de supremacia, recorre-se à falsidade para se dar valor à livre expressão.
A liberdade ficou subjugada pelos interesses dos poderosos, a democracia violentada para a defesa dos mais fortes, os direitos humanos espezinhados pelos interesses económicos e, a justiça, restrita aos segmentos mais frágeis de colectivos, compartimentados em cada país, por obediência a outros.
O mundo necessita de coragem para romper com as barreiras dos interesses que, pretensamente globais, conduzem a actos de injustiça, com que nos deparamos ou testemunhamos directa ou indirectamente. Hoje, o colectivo das pessoas reage, numa similaridade confrangedora aos revolucionários da década dos sessenta, que devoravam as máximas e as vomitavam, incendiando os ares de um outro fenómeno global... da ignorância inocente de uma humanidade, ainda descalça e analfabeta, isolada e sub-desenvolvida.
Mas o indivíduo, como o colectivo de hoje, está intoxicado pelo avanço da ciência de que ficou escravo, e continua descalço porque os sapatos estão sempre a pedir reciclagem; e continua analfabeto, porque não percebe que já percebeu que os problemas são sistémicos e estruturais.
O indivíduo, como o colectivo de hoje, preenche cada momento do seu dia no consolo das novas tecnologias, que transpõem fronteiras, mas continua isolado, porque embora se comunique com outros à distância, as palavras já nem confortam as suas penúrias; e continua sub-desenvolvido, porque ou lhe pagam para não produzir ou não tem emprego e lhe negam oportunidades.
O indivíduo, como o colectivo de hoje, ficou reduzido ao automatismo do pensar e tornou-se adicto à droga do ‘marketing’, tornou-se escravo da especulação dos grandes capitais e ficou refém da subida e descida das bolsas de valores, que não são suas, porque as suas magras carteiras só acumulam cartões de dívidas.
Num retrato amalgamado de indivíduos... sem rosto, sem cor, sem origem, sem futuro... o colectivo de hoje encontra-se estilizado nos mais altos ideais da ditadura moderna... que faz vénia aos poderosos de dinheiro e influentes na política. Sob outro ângulo, já numa dispersão espacial, vemos indivíduos... com rosto, com cor, com origem e com futuro, de promessas de miséria... tornados números adoptivos de grandes Organizações, que se pagam bem, para perpetuar a ajuda a pobres de participação e a esfomeados da justiça social.
Numa referenciação a grandes e pequenos colectivos, onde uns são dadores de sangue, enquanto outros, dependentes desse sangue, eles todos se confundem em ideais que se transformam em campos de batalha, que geram desconfianças e alimentam incertezas, que exaltam ódios e motivam vinganças.
Houve já demasiados debates sobre a não proliferação de armas. As empresas de armamento arrecadam triliões de dólares de lucro, com as guerras que não perspectivam um final decisivo, em tempos menos próximos.
Milhões de seres humanos estão sob a ameaça de morrerem de fome. As ajudas humanitárias vão chegando para distribuir comida e tendas, sem uma perspectiva clara de água para a agricultura que não existe, e assim dar força à apregoada sustentabilidade... na pobreza de milhões e milhões de crianças, mulheres e homens.
No mínimo, retenho a liberdade de pensar em voz alta: os indivíduos no poder perderam o sentido humanista no tratamento dos problemas do colectivo. No mínimo também, não estou impedido de perceber que a decisão desses indivíduos ficou enjeitada
nos volumosos relatórios dos ‘so called’ proeminentes grupos, prestigiados por analisar os outros. E responsabilizar os outros. Somente os outros.
Só assim, indivíduos, no colectivo, já podem dizer: nós e eles! E, em situações imperfeitas, onde não há aceno a alternativas, a doutrina da chantagem: ou nós... ou eles!
Hoje em dia, onde o fanatismo se agudiza para marcar supostas diferenças... em nada mais que aberrações ideológicas, nesta aldeia global onde todos somos chamados cidadãos do mundo, as Universidades seriam a escola de referência de cidadania. Os jovens de hoje são a promessa do futuro. Um futuro necessariamente diferente, um futuro de maior humanismo e de maior justiça social, um futuro de maior respeito mútuo e de verdadeira paz... em todo o globo e para todos os seres humanos.
E esse futuro já deveria ter dado início... como reparação do presente!
Deste presente... onde a vida já não é mais que uma previsão devastadora do imprevisível da aliciante ciência política e financeira, onde a tecnologia de mercado faz o ‘merger’ da necessidade com a dependência.
Peço desculpas por a ‘oração’ não ter sido nem ‘breve’ e muito menos ‘elegante’, como seria da praxe.
Foi apenas um rascunho no ócio do tempo e do espaço, no singular de um indivíduo, que quer sua integração ao tempo e ao espaço do colectivo. Retomei, por força das circunstâncias, o melancólico e o rústico mas reconfortante canto das aves, do meu país, que invariavelmente anunciavam, todos os anos, a chegada da época das chuvas, mas precisamente dessas aves que desapareceram, por acção e obra do ‘climate change’ que, afinal, nós os timorenses não provocámos.
Agradeço à Faculdade de Letras e à Universidade de Coimbra esta honra e agradeço também a presença de todos e o carinho dos amigos.
Muito obrigado.
Kay Rala Xanana Gusmão
28 de Setembro de 2011
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